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Quando você terminar de ler este texto, uma menina terá sido estuprada

Políticos invertem a lógica para penalizar as vítimas e transformá-las em criminosas

Protesto em Brasília contra o PL 1904/2024, que equipara aborto de gestação acima de 22 semanas a homicídio - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ao final deste texto, pelo menos uma mulher ou menina terá sido estuprada no Brasil.

Este é o tempo que separa uma vítima de abuso sexual da próxima: oito minutos. Os dados do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam), lançado em abril deste ano, mostram que só em 2022 foram mais de 67 mil casos de violência sexual no país.

Mesmo assim, a Câmara de Deputados decidiu discutir um projeto de lei que pretende criminalizar essas mulheres caso engravidem e busquem seu direito ao aborto.

O PL 1904/2024, conhecido como PL do Estuprador, iguala qualquer aborto feito após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio, inclusive para as gestações decorrentes de estupro. Com o projeto, mesmo nas situações já previstas em lei - em caso de risco de vida à gestante, gravidez resultante de estupro ou feto anencéfalo - toda mulher que abortar depois de cinco meses de gravidez poderia ser presa.

Isso significa que, se ela fosse estuprada e decidisse abortar, segundo a proposta, ela receberia uma pena de até 20 anos, o dobro da condenação do próprio estuprador, que chega a no máximo 10 anos. Estamos debatendo retirar um direito garantido às mulheres desde 1940 pelo Código Penal brasileiro.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima a ocorrência de 822 mil estupros por ano no Brasil. Aqui no Paraná são 27 casos de violência sexual por dia. Entre janeiro de 2020 e abril de 2024, foram mais de 43 mil ocorrências, sendo que Curitiba sozinha engloba quase 6 mil casos, conforme dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado (Sesp-PR).

O cenário fica ainda mais grave quando analisamos quem são as principais vítimas de estupro no país. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, 6 em cada 10 vítimas de abuso sexual têm 13 anos ou menos. Estamos falando, sobretudo, de meninas negras e pardas.

Por esse motivo o projeto também foi apelidado de PL da Gravidez Infantil, visto que ele prejudicará principalmente crianças menores de 14 anos, representantes do maior grupo que necessita dos serviços de aborto após o 5º mês. Nessa faixa etária, em que qualquer gravidez é fruto de um estupro de vulnerável, há mais demora em descobrir ou mesmo identificar uma gestação. Ainda mais porque na maioria dos casos o autor do crime é da própria família.

Só em 2022, de acordo com o Anuário, foram mais de 56 mil denúncias de estupro de vulnerável, o que corresponde a 153 casos por dia. Nesses casos, os principais autores do crime eram familiares da criança.

A gravidez em menores de 14 anos é extremamente perigosa porque o corpo dessas meninas não está preparado para conceber uma criança já que ele ainda está sendo formado. Digo isso como médica ginecologista com mais de 30 anos de experiência.

Essas meninas deveriam estar sendo ouvidas, acolhidas e protegidas. Mas, ao contrário, estão tendo que ouvir políticos discutindo se elas deveriam acabar presas ou mortas. Tudo baseado em uma lógica cruel na qual as vítimas se tornam criminosas. Nós, enquanto sociedade, deveríamos trabalhar para garantir condições efetivas e agilidade no acesso amplo ao aborto legal e seguro pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mas, mais uma vez, quem está legislando sobre a vida, a liberdade e o corpo feminino são os homens.

No debate sobre o corpo da mulher todo mundo pode opinar, menos ela

Ao longo deste mês, ficou muito claro que no debate sobre o corpo e a autonomia das mulheres, todos podem opinar, menos elas. O fundamentalismo religioso, as crenças pessoais, os homens e os cidadãos de bem: todos se sentam à mesa para discutir, com exceção daquelas que realmente deveriam estar lá, que frequentemente são silenciadas.

Na Câmara Municipal de Curitiba, tentamos aprovar uma moção contrária ao PL 1904.

No entanto, numa Casa Legislativa formada por 31 homens e apenas sete mulheres, não foi nenhuma surpresa ver o requerimento rejeitado. Além de mim e das vereadoras Giorgia Prates - Mandata Preta (PT) e Professora Josete (PT), que assinamos a moção, votaram a favor apenas outros dois parlamentares, Angelo Vanhoni (PT) e Bruno Pessuti (Pode). Foram 12 votos contrários, três abstenções e 17 vereadores que se ausentaram do plenário para não terem que debater a questão.

Em uma discussão séria que envolve saúde pública e os direitos de meninas e mulheres não cabem achismos nem moralismos. Não vamos nos calar, muito menos ficar inertes diante de ameaças tão violentas aos nossos direitos e às nossas vidas.

*Esta coluna foi publicada no jornal Brasil de Fato Paraná em 29 de junho de 2024.